À meia-noite de cada Sexta-Feira de Quaresma, assiste-se numa das vilas mais antigas do alto Douro a um lúgubre cerimonial nascido da mistura de tradições pagãs com lendas religiosas.
Assim que se apagam todas as luzes de Freixo de Espada à Cinta, parte da igreja matriz da vila um cortejo sombrio e vagaroso, pautado pelo silencio sepulcral que lhe confere um ambiente soturno e quase intimidante. À frente, dois homens encapuçados deixam cair as lares (*) assim que se ouve a primeira das doze badaladas do sino da torre. Começam então os seus sete passos, findo os quais se detêm, aguardando os restantes membros do cortejo. Alguns metros atrás, a “velha” caminha, curvada e apoiada num cajado, com passos curtos e a medo. Numa das mãos leva um lampião (noutros tempos seria uma candeia alimentada a azeite) – a única luz acesa em toda a vila. Por vezes, detém-se momentaneamente: é um homem que se ajoelha diante de si para implorar, penitente. Se o pedido for feito com o devido respeito e com o arrependimento que se impõe, a velha oferece-lhe uns breves golos de vinho da botelha que traz pendurada no cinto. (O vinho representa o sangue de Cristo por nós derramado). O homem ergue-se e volta a colar-se ao muro da casa, afastando-se do caminho.
Olhemos para trás, deixando passar por nós a velhinha e aguardando o coro. Composto por homens, pára em cada cruzeiro para encomendar as almas ao purgatório. Foram em tempos 14 as paragens na vila – a primeira cruz colocada à saída da igreja românica e a última no Calvário. Em cada local, dedicam palavras aos céus, cantando com vigor versos em latim e em português, num registo arrastado e arrepiante:
Vexilla Regis prodeunt,
Fulget crucis mysterium
Qua vita mortem pertulit
Et morte vitam protulit.
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(Ó nobre estandarte do Rei dos Reis
Ó misteriosa cruz, aparece agora
Pois a vida sofreu a morte
E pela sua morte nos deu vida)
Demora a cerimónia algumas horas, impondo um esforço físico terrível ao homem que faz de velhinha. O silêncio e o respeito são as notas dominantes (ou deveriam ser) num evento que tem tanto de sombrio como tem de belo.
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Pede ainda desculpa o autor pela fraca qualidade de imagem. Pelos motivos já explicados, as condições de luminosidade são deficientes. Na impossibilidade de recorrer a luz artificial, foi a solução possível. Na imagem, vê-se um homem a ajoelhar-se diante da "velhinha" e a pedir um pouco de vinho.
4 comentários:
Espectacular, meu amigo! Sorte tens tu que ainda vieste a conhecer esta linda fantástica tradição. Espero ainda conseguir presenciar esse assombro. Parece-me uma experiência única!
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Que pena o video estar tão escuro...mas adorei o texto sobre a tradição...que é algo que deveriamos sempre preservar!
Parabéns!
LC
Confesso que sendo um agnóstico em matéria de religião (atenção: não confundir com ateísta, ateísta agnóstico ou até mesmo teísta agnóstico, nem tão pouco com herege!), esta época não me diz muito. Porém, acho que as tradições devem ser respeitadas, desde que tenham de facto uma história (sim, não é como as touradas de morte em Barrancos que se faziam há coisa de 50 anos...). A encenação parece-me muito interessante sobretudo pelo caracter que o impressionismo implícito lhe confere - o tal ambiente que intimida quem assista acaba por lhe dar certamente maior encanto e até confere um maior respeito pela fé a quem assiste. Só é pena que, à imagem de todas as tradições ligadas à Quaresma (e não só...) seja uma cerimónia carregada de dor e de sofrimento.
É o BI de cada terra, é o que faz dela única, nossa e rica. Infelizmente este tipo de tradições está a cair, fruto de uma população envelhecida que só deixa tradições e de uma nova geração que prefere importar costumes e tendências de países que não as têm.
Bom texto, óptimo vídeo.
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